terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Regulamento de Licitações e Contratos do Sistema S: flexibilidade ou letra morta em face dos recentes posicionamentos da CGU e do TCU?

 Autor: Vinicius Diniz e Almeida Ramos

Breve histórico dos Regulamentos de Licitações e Contratos do Sistema S
O Tribunal de Contas da União – TCU, na emblemática Decisão n. 907/1997 (Plenário), decidiu, sob a batuta do Relator, Ministro Lincoln Magalhães da Rocha, que as entidades do denominado “Sistema S” não poderiam ser equiparadas aos órgãos e entidades da Administração Pública, eis que, inobstante beneficiárias de contribuições parafiscais, são entes dotados de personalidade jurídica de direito privado, que atuam ao lado do Estado, prestando serviços de interesse público ou social.
Naquela oportunidade, foi destacado que “[...]de acordo com a Constituição Federal apenas os órgãos da Administração Direta e Indireta, incluídas nessa última categoria as fundações, estão sujeitos ao processo licitatório em suas contratações, não se aplicando esses dispositivos aos chamados serviços sociais autônomos, vez que não pertencem à Administração Pública Direta ou Indireta [...]”.
Enquanto vigente o Decreto n. 2.300/1986, o entendimento do Tribunal de Contas da União era de que as entidades do “Sistema S” estavam sujeitas a este diploma legal, até que editassem seus próprios regulamentos de licitação.
Com a chegada da Lei n. 8.666/93, o entendimento do TCU não foi alterado, permanecendo a ideia de que, até a elaboração de regulamentos próprios, as entidades do “Sistema S” deveriam observar a mencionada Lei quando da realização de suas compras, contratações e alienações.
Destacou o Relator na Decisão n. 907/1997 TCU – Plenário, que “tanto o parágrafo único do art. 1º quanto o art. 119 da Lei nº 8.666/93 não podem abranger os serviços sociais autônomos porque eles não se inserem entre as entidades que compõem Administração Pública e tampouco são entidades controladas direta ou indiretamente pela União.” Prossegue o eminente Relator, salientando que “a submissão dos serviços sociais autônomos à fiscalização do Estado e à jurisdição do Tribunal [...] não implica em rigorosa observância à legislação a que estão sujeitos os órgãos e entidades da Administração Pública.” E complementa: “[...] é razoável que os serviços sociais autônomos, embora não integrantes da Administração Pública, mas como destinatários de recursos públicos, adotem, na execução de suas despesas, regulamentos próprios e uniformes, livres do excesso de procedimentos burocráticos, em que sejam preservados, todavia, os princípios gerais que norteiam a execução da despesa pública.”
Importante também destacar a conclusão do Ministro Relator, que assim se manifestou: “O fato de os serviços sociais autônomos passarem a observar os princípios gerais não implica em perda de controle por parte do Tribunal. Muito pelo contrário: o controle se tornará mais eficaz, uma vez que não se prenderá à verificação de formalidades processuais e burocráticas e sim, o que é mais importante, passará a perquirir se os recursos estão sendo aplicados no atingimento dos objetivos da entidade, sem favorecimento. O controle passará a ser finalístico, e terá por objetivo os resultados da gestão.”
Em face da Decisão n. 907/1997 TCU – Plenário, as entidades integrantes do denominado “Sistema S” iniciaram trabalho conjunto, no sentido de elaborarem regulamentos próprios, capazes de preservar a moralidade e a isonomia e, ao mesmo tempo, empreenderem maior flexibilidade e celeridade aos seus procedimentos licitatórios. Surge, então, o Regulamento de Licitações e Contratos do “Sistema S”, que foi levado à apreciação do Tribunal de Contas da União.
Por meio da também emblemática Decisão n. 461/1998 TCU – Plenário, o Tribunal assim decidiu:
O Tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo Relator, DECIDE: 1 - receber a presente minuta de Regulamento de Licitações e Contratos das entidades integrantes do Sistema "S", mencionadas no item 4 supra, tendo em vista a Decisão Plenária/TCU nº 907/97, prolatada na Sessão de 11/12/97, que concluiu que os Serviços Sociais Autônomos não estão sujeitos à observância aos estritos procedimentos estabelecidos na Lei nº 8.666/93, e sim aos seus regulamentos próprios devidamente publicados, consubstanciados nos princípios gerais do processo licitatório; 2 - informar à Confederação Nacional da Indústria que: 2.1 - cabe aos próprios órgãos do Sistema "S" aprovar os regulamentos internos de suas unidades; 2.2 - este Pretório, ao julgar as contas e ao proceder à fiscalização financeira das entidades do Sistema "S", pronunciar-se-á quanto ao cumprimento dos regulamentos em vigor, relativamente a licitações e contratos, bem como à pertinência desses regulamentos em relação à Decisão/Plenário/TCU nº 907/97, prolatada na Sessão de 11/12/97; e 3. arquivar o presente processo.

Dessa forma, em 16 de setembro de 1998, foram publicados no Diário Oficial da União os Regulamentos de Licitações e Contratos das entidades integrantes do “Sistema S”, ficando tais entidades, a partir de então – e em tese – dispensadas do cumprimento dos termos da Lei n. 8.666/93.
Aí se encontra um breve histórico acerca do surgimento dos Regulamentos de Licitações e Contratos das entidades do “Sistema S”.
Da involução do entendimento primitivo
Com o passar dos anos (de 1997 até os dias atuais), o próprio Tribunal de Contas da União passou a empreender, junto às entidades do Sistema S, uma espécie de ação fiscalizatória que, a cada dia, se assemelha àquelas empreendidas junto aos órgãos e entidades da Administração Pública.
De pouco tem adiantado as normas flexíveis dos Regulamentos próprios, eis que, tanto a Controladoria Geral da União (CGU), quanto o Tribunal de Contas da União, adotam, como regras de fiscalização, Acórdãos emanados do TCU, na maioria das vezes decorrentes de ações fiscalizatórias realizadas em órgãos e entidades da Administração Pública e, outras tantas vezes, de Acórdãos provenientes de ações fiscalizatórias realizadas junto aos serviços sociais autônomos, mas que se balizaram em premissas e exigências próprias da Administração Pública.
Não raro, tem-se notado um certo “desprezo” dos agentes fiscais  pelas regras (simples e flexíveis) dos Regulamentos, dando origem, dessa forma, a “recomendações” e “determinações” que não se coadunam com os dispositivos regulamentares e com a exegese das Decisões n. 907/1997 e n. 461/1998.
No Acórdão n. 825/2010 – TCU Plenário, por exemplo, o Tribunal determinou ao SEBRAE/RR que passasse a utilizar a IN/MPOG/SLTI n. 02, na contratação de serviços de mão de obra terceirizada. O mesmo entendimento foi exarado no Acórdão n. 304/2010 TCU 2ª Câmara (tendo o SENAI/RR como entidade fiscalizada), Acórdão n. 700/2010 TCU 2ª Câmara (SENAC/RR) e Acórdão n. 792/2010 TCU 2ª Câmara (SESI/RR). Acórdãos estes que têm sido utilizados como paradigma em auditorias realizadas nas demais entidades do “Sistema S”.
Ocorre que a IN/MPOG/SLTI n. 02 foi editada pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (ligado, portanto, ao Poder Executivo da União), tendo como destinatários específicos, nos termos de seu art. 1º, os órgãos e entidades integrantes do Sistema de Serviços Gerais – SISG. Por sua vez, o Decreto n. 75.657, de 24/04/1975, que instituiu o SISG, indica no §1º do art. 1º, que integram o Sistema os órgãos e unidades da Administração Federal direta e autárquica incumbidos especificamente da administração de edifícios públicos, imóveis residenciais, material, transporte e protocolo, movimentação de expedientes, arquivo e transmissão e recepção de mensagens.
Ora, basta uma simples leitura para termos como clara e induvidosa a inaplicabilidade da IN/MPOG/SLTI n. 02 às entidades do “Sistema S”, eis que tais entidades não são destinatárias nem da própria IN, nem do Decreto n. 75.657/1975. Se já pacificado o entendimento de que os serviços sociais autônomos não se sujeitam nem mesmo à Lei de Licitações (Lei n. 8.666/93), com muito mais razão não devem se sujeitar a uma Instrução Normativa (que, lembre-se, não tem força de lei) emanada do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Com a devida venia, recomendação nesse sentido soa teratológica, desprovida de qualquer sentido.
Outro bom exemplo acerca do desalinho entre as Decisões n. 907/1997 e n. 461/1998 e as recentes recomendações e determinações do Tribunal de Contas da União, diz respeito à exigência de que os procedimentos licitatórios das entidades do “Sistema S” sejam precedidos de pesquisa prévia de preços no mercado. Vale lembrar, nesse passo, que o art. 7º, §2º, inciso II, da Lei n. 8.666/93, exige, como condição para as licitações de obras e serviços, a existência de orçamento detalhado em planilhas. O Regulamento de Licitações e Contratos, ao qual as entidades do “Sistema S” estão subordinadas, porém, trata o assunto no art. 13, que assim dispõe:
Art. 13. O procedimento da licitação será iniciado com a solicitação formal da contratação, na qual serão definidos o objeto, a estimativa de seu valor e os recursos para atender à despesa, com a consequente autorização e à qual serão juntados oportunamente todos os documentos pertinentes, a partir do instrumento convocatório, até o ato final de adjudicação.
Conforme se vê, o dispositivo exige a indicação da estimativa de valor, o que jamais pode ser confundido com pesquisa prévia de preços, eis que àquela se pode chegar de vários modos, inclusive por meio de conhecimento empírico e daquele próprio do homem médio. Entretanto, a CGU e o TCU têm firmado entendimento de que as licitações do Sistema S devem ser precedidas da pesquisa, extrapolando, em muito, a melhor interpretação dos Regulamentos.
Por fim, vale ainda mencionar as reiteradas recomendações da CGU e do TCU no sentido de que os serviços sociais autônomos deem preferência à modalidade de licitação denominada Pregão, sobretudo na forma eletrônica. Ora, os Regulamentos de Licitações e Contratos dessas entidades tratam o Pregão como mais uma modalidade licitatória à disposição da Administração, não atribuindo a ela qualquer primazia em relação às demais. Em outros termos, cabe às entidades promotoras do procedimento licitatório optar, ou não, por sua utilização.
Entretanto, as ações fiscalizatórias da Controladoria Geral da União – CGU e do Tribunal de Contas da União – TCU caminham no sentido de atribuir às entidades do “Sistema S” o mesmo dever atribuído aos órgãos da Administração Pública Federal, no tocante ao Decreto n. 5.450/2005, que em seu art. 4º, estipula que “Nas licitações para aquisição de bens e serviços comuns será obrigatória a modalidade pregão, sendo preferencial a utilização da sua forma eletrônica.” Desnecessário lembrar que o mencionado Decreto não inclui dentre seus destinatários as entidades do “Sistema S”.

Conclusão
Conforme exemplificadamente procurou-se demonstrar, os Regulamentos de Licitações e Contratos dos serviços sociais autônomos têm se transformado em “letra morta”, frente às interpretações equivocadas e às diretrizes fiscalizatórias implementadas pelos órgãos de controle (CGU e TCU).
As emblemáticas Decisões 907/1997 e 461/1998 aparentemente perderam-se no tempo. Esqueceram-se delas aqueles que as deveriam privilegiar, ou seja, os órgãos de fiscalização, eis que as referidas Decisões foram emanadas do órgão máximo do Tribunal de Contas da União. Ao mesmo tempo, tornaram-se despiciendas as flexibilidades, simplicidades e prerrogativas facilitadoras constantes dos Regulamentos de Licitações e Contratos, haja vista que as ações fiscalizatórias têm desprezado seus dispositivos, dando primazia aos recentes entendimentos do TCU que, via de regra, insiste em (sutilmente) equiparar os serviços sociais autônomos a entes da Administração Pública.
Creio estarmos diante de antagonismos que exigem solução breve. Não podem as entidades do “Sistema S” continuarem navegando à deriva. Sua bússola (Regulamento de Licitações) já não serve, segundo o entendimento dos órgãos fiscalizatórios, para apontar o Norte. Não podem tais entidades ficarem sujeitas ao apego legiferante da CGU e do TCU. Os Regulamentos existem, estão no mundo, e são seus dispositivos que devem direcionar as atividades de compras e contratações dos serviços sociais autônomos. Nem mais, nem menos. Aos agentes fiscais, resta ação nobre: verificar, com equilíbrio e parcimônia, se tais dispositivos estão sendo cumpridos e se os recursos estão sendo aplicados no atingimento dos objetivos da entidade, sem favorecimento.
Pensar e agir de modo diverso é viver na falácia. É sepultar uma conquista (Regulamento de Licitações e Contratos) medalhada pelo próprio Tribunal de Contas da União. É desprezar as célebres palavras do Ministro Lincoln Magalhães da Rocha. É caminhar na contramão, subjugando a eficiência. É, por fim, tangenciar a solução de um problema que se apresenta, perenizando a dúvida e a falta de rumo.